Mônica Salmaso e Teresa Cristina: entre casas, lives e lendas
“Alguém cantando longe daqui / Alguém cantando longe, longe...”.
Alguém cantando é sempre bom de se ouvir e, nesse quesito, o impulso das transmissões ao vivo ao longo da pandemia de Covid-19 é impressionante. Já em abril se atestava um crescimento de buscas por esse tipo de conteúdo na casa dos 4900%, como veiculado pela revista EXAME a partir de dados do Youtube. O sucesso mundial se repetiu no Brasil como forma de sustentar e ativar a indústria de entretenimento, ou, mais propriamente, os seus artistas subordinados, paralisados em grande parte dos seus trabalhos de divulgação e performance - uma das várias áreas de atuação profissional que não costuma dispensar aglomerações.
De um lado, os principais nomes do mercado musical puderam de uma produção cuidadosa e múltiplos patrocínios, atingindo seus milhões de seguidores e quebrando recordes de visualização com ostensivas transmissões caseiras. De outro e para além desse universo, houve quem apenas dispusesse de uma abordagem mais despretensiosa, ou optasse por um caminho alternativo. E se for possível arriscar um palpite, serão os artistas desse segundo grupo a sair do isolamento com uma imagem renovada e fortalecida. Entre a antológica live-aniversário de Caetano Veloso e os 54 milhões de views registrados à campeã de acessos ao vivo, Marília Mendonça, há um campo extenso de diferentes fenômenos virtuais. É o caso das cantoras Mônica Salmaso, 49, e Teresa Cristina, 52.
Foi conversando com o amigo e músico carioca Alfredo del Penho que Mônica te ve a ideia de produzir registros de encontros musicais à distância, gravados e editados, mas que buscassem simular conexão e proximidade. A tela repartida em dois ou múltiplos rostos e instrumentos permite trocas de olhares, alguma prosa e música, sugerindo o recorte de um Brasil diverso, ao nosso alcance entre ritmos e timbres. Com o próprio Del Penho, em um dueto improvisado de “Cor da Esperança” (Cartola/Roberto Nascimento) a cantora paulistana lançou sua série “Ô De Casas” em suas redes sociais - Youtube, Instagram e Facebook.
Ao longo de quase dois meses, Mônica produziu 74 vídeos num entusiasmo justificado pelo impecável rigor na execução de cada canção junto aos convidados e que encontrou público atento a cada estreia diária. Teve de tudo: samba-canções com Guinga, causos e modas de viola com Rolando Boldrim, voz e piano com Ná Ozzetti, bossa, percussão – até a participação de Chico Buarque. A decisão por arrefecer o lançamento frenético dos encontros, agora semanais, veio da necessidade explicitada de estruturar melhor o projeto e, para além disso, buscar oportunidades mais pragmáticas de retorno financeiro, frente a prolongação do isolamento.
Já são 119 registros de "des-isolamento responsável" desde o 24 de março inicial, marca que só perde, talvez, para as mais de duzentas lives da carioca Teresa Cristina. Com vinte e cinco anos de carreira na cena do samba, a pandemia representou definitivo aperfeiçoamento de uma nova cantora, que se abre ao improviso, ao riso e ao contato com seu público. Teresa credita a Caetano Veloso, diretor de seu mais recente projeto, um passo decisivo em direção à própria desinibição e aproveitamento de sua presença cênica. Diretamente do bairro da Penha, em suas transmissões diárias pelo Instagram, cantando à capella a partir de temáticas variadas, recebe amigos e conhecidos, artistas e admiradores.
Por seis meses ininterruptos, iniciando às 22h (horário recém remanejado para a faixa das 20h) e sem hora certa para terminar, criou um ambiente vibrante em que se deseja estar e que se mantém, com pequenas variações, em mais de 1000 espectadores todas as noites. Dentre os muitos que deram as caras na discussão estão o próprio Caetano, Gilberto Gil, Antônio Pitanga, Marisa Monte, Alcione e até o ex-presidente Lula, recepcionados por uma Teresa aos prantos, tiete confessa.
Essa brincadeira já lhe rendeu o triplo de seguidores em suas redes sociais, o primeiro fã clube e a capa da revista Vogue Brasil de julho – além de 14 milhões e meios de votos na categoria de melhor live do prêmio MTV MIAW. Mas como pensar essa forma de produção cultural a longo prazo?
Certamente, as transmissões em redes sociais e conteúdos audiovisuais como as de Teresa e Mônica não se sustentam ou se monetizam por si só – nem se prestaram a isso. Valeram-se, no máximo, da popularidade que alcançaram organicamente pela iniciativa espontânea de ambas. A grandeza de seus projetos no isolamento parece ter sido, no entanto, a aproximação de suas imagens aos diferentes públicos que os acompanham. Essa é a conquista mais clara dos chamados “artistas de segmento”, denominação nada pertinente que inclui aqueles que passam ao largo de contratos milionários e grandes multidões pagantes. Por ora, seguem as lives – que também vêm se adaptando a formas híbridas, com pagamento opcional de ingressos, ou mesmo configurando shows on-line, como vem fazendo o espaço “Casa de Francisca”, em São Paulo.
Enquanto Teresa se consolidou como cerimonial de encontros esperados, Mônic a demonstrou que retidão musical e rigor técnico não impedem suas aparições descontraídas tanto nos vídeos do “Ô De Casas” quanto em suas aparições ao vivo. Assim, as vozes "que cantam como que pra ninguém”, como na canção, podem criar uma relação mais franca e sincera com quem as repercute, no avesso das telas. Uma vulnerabilidade que inspira pelo convívio mais íntimo com os admiradores, mas que assusta, como se a instância performática do palco desaparecesse.
De fato, o que menos se espera é reproduzir um reality show a cada transmissão. Pelo contrário, que se aproveite a dinâmica inaugurada por essa plataforma para promover uma troca mais horizontal entre artista e público, na esperança de que isso se perpetue para além da interface virtual.
Nesse sentido, especialmente inspirada foi uma das várias "Batalhas de Cantoras" quadro que reúne, às quintas-feiras, as parceiras Salmaso e Teresa para revezarem seus repertórios em cantorias e gargalhadas na live do dia. A exibição de 14 de julho, só com canções de Chico Buarque em interpretações penetrantes e emocionadas, trouxe todo afeto e partilha que faltam a estes dias de desassossego. Já alta madrugada, a canção final, sussurrada como aceno de despedida à moda dos antigos programas de rádio, pedia: “Faz-se certeza / Minha canção / Réstia de luz / Onde dorme o meu irmão.”
Um dos bordados que compõem o projeto "Ô de Casas em Panos, Fios e Pontos", realizado por bordadeiros de todo o país a partir da série de Mônica Salmaso. Este, baseia-se na canção "Lembre-se" (Moacir Santos/Vinicius de Moraes) (REPRODUÇÃO: Instagram)
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