Os Ecos
Inclinata Res Publica
Os ciclos de Estado sugerem sempre a volta de períodos caóticos
“Nosso tempo caiu” (fracta est aetas). O nascimento e sepultamento das formas de vida parecem, muitas vezes, invisíveis aos olhos de seus contemporâneos, um novelo de lã que somente seus descendentes têm a competência de desenrolar e tricotar em alguma forma tangível. O século XXI não é diferente, e o nó social, político e econômico parece particularmente difícil de desembaraçar, deixando a sensação angustiante de atirar sempre no escuro.
Texto por Elena Marques
Então, quando do meio do caos surge uma fórmula de análise da sociedade, parece bom demais pra ser verdade. Seu criador: Políbio, um geógrafo e historiador grego que viveu entre os século II e III a.C, analista e profeta da queda do Império Romano, e criador de um dos conceitos mais antigos da República. Seu nome: anaciclose. Usando como ponto de partida a reflexão sobre o colapso derivada de Platão ( “a humanidade sofreu muitas vezes importantes destruições por causa de dilúvios, epidemias, e outras causas: catástrofes que não deixaram subsistir mais que uma pequena porção de nossa espécie”), o início da anaciclose se dá a partir da ressaca da destruição de uma sociedade por um cataclismo:
"De que espécies de origens desejo falar e de onde nascem, a meu ver, os regimes políticos? Quando inundações, epidemias, más colheitas ou causas de mesmo tipo engendram uma destruição do gênero humano, (...) perecem então todas as atividades e todas as artes. Entretanto, a partir dos germes (por assim dizer) que sobreviveram, os homens tornam-se com o tempo mais numerosos e, assim como outros seres vivos, voltam a se agrupar".
Da necessidade de ordem nesses agrupamentos surge a liderança de um indivíduo consagrado como um primeiro rei. Políbio descreve em seis fases, então, o que chama de anaciclose, isto é, o ciclo de degradações das constituições políticas (politeiai), vítimas da avareza (pleonexia):
(1) a realeza se degrada até a sua forma maligna, a monarquia ou tirania; (2) estas são depostas pela aristocracia (do grego aristokratía, composta por aristos 'excelente', e kratos 'regra', podendo ser traduzida como “o governo dos melhores”); (3) a aristocracia se degrada em sua forma maligna, a oligarquia (do grego “oligarkhía", "governo de poucos"); (4) a oligarquia é deposta pela democracia; (5) a democracia se degrada em sua forma maligna, a oclocracia (do grego okhlokratía, literalmente “governo da multidão”); (6) a oclocracia leva a um caos anárquico que clama pela restauração da realeza, reiniciando o ciclo até a derrocada final da sociedade, segundo um paralelo metafísico do mesmo autor entre natureza e história: “que tudo o que existe esteja sujeito à ruína (ftorá) e à mutação (metabolé) é desnecessário dizê-lo: a lei da natureza basta a nos convencer disso”.
Dissecando bem a previsão do historiador, é interessante pensar esse ciclo estendido ao longo dos últimos dois mil anos de sociedade ocidental, e mais ainda aplicá-lo à contemporaneidade. Seria uma forma talvez interessante (ainda que assustadora) de analisar a ascensão da extrema direita e o clamor pela centralização do poder nas figuras patriarcais de Bolsonaro, Trump, Orbán, entre tantos outros. Mas olhando por uma lente um pouco mais próxima de casa, logo essas ideias se torcem em solo brasileiro, que nunca transicionou naturalmente entre os estágios da teoria. Já fomos monarquia, oligarquia democrática e democracia oligárquica, sem necessariamente ter passado pelos passos que viriam antes ou depois dos estágios previstos na teoria, e sem nenhuma garantia de que passaremos.
Dando alguns passos pra trás, ainda, vê-se ao nível mundial uma nova presença: as grandes indústrias e empresas, que, entremeadas nas engrenagens da política, economia e do imaginário coletivo, moldam caminhos específicos aos seus interesses em escala global, não exatamente preenchendo o lugar de nenhum dos estágios e parecendo não dar abertura para uma nova fase.
Independente da próxima fase que iremos encarar encararemos, parece claro que a sociedade ocidental se encontra em algum tipo de colapso, seja ele social, econômico, político, ambiental (com as implicações sinistras da analogia metafísica polibiana entre sociedade e natureza), de valores etc. É confuso e muito assustador. E como na queda do Império Romano, tomamos a mão de Políbio tal como Cornélio Cipião, conquistador de Cartago, tomou a mão do historiador no século II a.C, dizendo: “Políbio, sim, isto é lindo; entretanto, receio e pressinto que outro venha a dar a nossa pátria a mesma notícia’ (que agora é dada a Cartago)”.