Os Anos Pós-Peste Negra
De uma bactéria presente nas pulgas dos ratos surgiu a maior pandemia de todos os tempos. Sim, pois por incrível que pareça a Peste Negra foi ainda pior do que a pandemia que agora enfrentamos. Estima-se que em decorrência da doença quase 100 milhões de europeus tenham morrido, ⅓ da população da época.
Isso tudo já é muito conhecido e documentado, sendo que pesquisadores atualmente conseguiram vestígios do local exato onde o surto se iniciou, ao que tudo indica no atual Quirguistão. Mas o que nem sempre se fala é como tudo terminou. Afinal, ainda que a Europa tenha continuado a existir, certamente nunca mais foi a mesma.
Os efeitos devastadores da peste fizeram que partes do continente recuperasse sua população somente duzentos anos depois, sendo que em cidades mais afetadas como Florença, os impactos ecoaram até o século XIX. Lá, Giovanni Boccaccio teve a inspiração para sua obra-prima, o Decamerão. 100 contos de dez jovens em quarentena. Pieter Bruegel, pintor renascentista, também se inspirou a pintar o horror da morte, no quadro que ilustra essa matéria.
Além de influência cultura, a peste provocou um enorme impacto na economia da época. O feudalismo entrou em completa decadência pela queda da mão-de-obra, já que boa parte havia morrido. Os restantes começaram, por esse e outros fatores, a buscar maior mobilidade social e houve, incrivelmente, um aumento salarial para o campesinato restante.
Mesmo com o aumento, havia uma grande dificuldade em conseguir alimentos, já que muitos senhores de terra da época decidiram banir as exportações, buscando conter o aumento de infecções. Isso gerou não só fome, como um grande aumento do mercado negro de alimentos. Mas, em geral, foram anos de elevação social para os camponeses que sobreviveram, extinguindo de vez a servidão e os garantindo ao menos um século de menor opressão no campo, que veio a retornar com o novo aumento populacional.
Com menos pessoas e menos agricultura, reduziu-se também o desmatamento nas florestas europeias, que foram deixadas intactas por muitos anos. Assim como houve nas primeiras semanas (apenas) de 2020, os animais passaram a novamente ocupar espaços mais urbanos e as florestas se recuperaram em grande escala.
Tal evento pode ter colaborado para que a Europa entrasse na conhecida “Pequena Era do Gelo”, um curto período entre o século XV e XVII onde as temperaturas médias no continente fossem mais baixas do que a expectativa. Entretanto, tanto os estudos socioeconômicos, quanto os geológicos são imprecisos, por se tratar de um período caótico e com poucos registros contemporâneos a respeito.
O que se sabe com certeza é que a humanidade ainda não tinha o conhecimento tecnológico necessário para barrar o avanço da peste e nenhum dos métodos aplicados para tratar os enfermos adiantava. Com isso, as populações passaram a associar a culpa da peste a alguns grupos da sociedade, como estrangeiros, ciganos e leprosos, além de explicações de cunho antissemita, como a perseguição aos judeus.
Tudo isso parece história de um tempo muito diferente do nosso, mas basta lembrar das primeiras semanas da pandemia de Covid-19 para vermos como ainda não somos tão evoluídos quanto pensamos. Atos xenofóbicos contra pessoas de origem asiática (especialmente do extremo oriente) foram reportados e até apoiados por uma pequena parcela da população, antes que essa se visse afetada muito mais pelos próprios governantes do que pelos que julgavam ser os culpados.
Seja por cólera divina ou irresponsabilidade humana, o remédio ainda é o mesmo. Cuidar de nossa saúde, investir na ciência e saber esperar, pois tudo passará. Nos dias de hoje, diferente do século XV, há excessos de informações, dados, opiniões e “fatos” sobre a pandemia da Covid-19, mas o tema ainda é tratado com algum misticismo e muitas vezes como campanha política. Caberá às futuras gerações discernir o que importou e fez a diferença do que só fez barulho e não teve eficácia. A elas caberá saber analisar quais foram os impactos, as grandes mudanças e os culpados para tamanha crise em que vivemos. Até lá, fiquem seguros, isolados e com saúde, pois apesar da medicina ter evoluído muito, ainda somos os mesmos.
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