Eleições e Protestos em Belarus
Texto por Ivan Conterno
As diversas e significativas crises políticas que debilitaram o mundo na última década desembarcaram agora em um país pouco notório para nós, reles ocidentais. Belarus, à semelhança do Brasil, também teria encontrado a cura para o novo coronavírus: Aleksandr Lukashenko, o presidente, teria recomendado aos cidadãos muita vodka e sauna para matar o indesejado vírus. Pelo menos foi o que noticiaram as agências internacionais no começo da pandemia. Em pleno ano eleitoral na pequena república eslava, o líder bielorrusso surgiu no imaginário mundial como um lunático ditador negacionista.
Cinco meses depois, o Jornal Nacional noticiou as eleições em Belarus como fraudulentas, enfatizando a prisão do candidato opositor e a entrada na disputa de sua esposa, esboçada pelo noticiário como mulher simples: uma professora que tinha largado tudo para se tornar dona de casa e que, mais tarde, virou heroína. Desencadeada de uma disputa política, a repressão policial nesse país passa na TV como representação de um Estado autoritário e ditatorial.
Para os formadores de opinião, a violência estatal é um escândalo nos governos não inseridos na cultura democrática europeia, a civilização por assim dizer. No Brasil, embora a repressão policial seja cotidianamente denunciada pelos movimentos sociais e pela imprensa alternativa como um genocídio da população negra e pobre, os grandes jornais apresentam esse problema como exceção à regra. Nos Estados Unidos, dado que os protestos contra os assassinatos de pessoas negras pelas forças policiais só aumentam, já ficou impossível não apresentar o assunto na grande mídia. E essas são democracias que possuem duas das maiores populações carcerárias do mundo! No entanto, as instituições desses países ainda aparecem nos veículos de grande alcance como imparciais, acima do bem e do mal, e os casos de repressão, como desvios de conduta de agentes isolados.
Por mais manifestações populares e greves que um país como os EUA sufoque anualmente, isso não é suficiente para ser considerado um regime autoritário pelos portais de notícias. Nos grandes veículos, governo autoritário é sinônimo de governo inimigo dos Estados Unidos, basta pesquisar por “authoritarian” no Google Notícias para confirmar que isso é verdade. Lukashenko, como vamos ver, não suscitou motivos em vida para figurar como aliado dos gringos. Com receio da oposição, Lukashenko já afirmou abertamente como seu governo seria: “um certo estilo autoritário de governo é característico em mim e sempre admiti isso”, concluindo que “você precisa controlar o país, e o principal é não arruinar a vida das pessoas.”
Seria interessante percorrer a história recente antes de qualquer análise. A briga em Belarus se desenrola desde as vésperas da dissolução da União Soviética, da qual fazia parte. Em 1991, Nikolay Dementey, o então presidente da Bielorrússia Soviética, apoiou a tentativa de derrubada de Mikhail Gorbachev, defendendo que “o desenvolvimento do país não deve basear-se na queda do nível de vida da população”. Frustrado o golpe, que todavia obedecia a um referendo popular no qual 77,8% votou pela manutenção da União Soviética, seu sucessor, Shushkevich conduziu a independência da república, tentando apagar o passado soviético e voltar suas atenções para o ocidente.
O problema foi que o parlamento conseguiu barrar grande parte das reformas econômicas e, no final de 1993, aparece ele, Alexander Lukashenko, que era presidente do comitê anticorrupção do parlamento, acusando 70 altos funcionários do governo, incluindo Shushkevich, de roubar os fundos do Estado para fins pessoais. O governo corrupto caiu e, em Lukashenko venceu as primeiras eleições diretas, em 1994, restaurando as funções e instituições da era soviética, ao mesmo tempo que estreitava as relações com a Rússia. Essa aproximação resultou numa união formal entre os dois países no final dos anos 90.
Em 1991, Zianon Pazniak, tinha reunido a Frente Popular Bielorrussa, movimento neoliberal anti-Rússia que recusava legado partisan e soviético do país. Ele organizou uma ocupação do parlamento com greve de fome contra um referendo popular de 1995 que alteraria a bandeira e os símbolos nacionais – desde 1991, o país estava usando uma bandeira da época da ocupação alemã, que é o símbolo da oposição radical até hoje.
Dezesseis anos depois, Pazniak revelou que a oposição bielorrussa era totalmente financiada e controlada pelo ocidente, não tendo ideias e objetivos próprios. Os movimentos oposicionistas, porém, não se restringiram à dieta. A partir de 1995, o governo passou a enfrentar os paramilitares da Legião Branca, fortemente reprimidos por causar distúrbios e espalhar símbolos fascistas.
Mas, afinal, quais interesses estão por trás das atuais passeatas contrárias ao governo? Quão representativas elas são?
Então vamos aos fatos mais recentes. Em 6 de maio deste ano, Sergei Tikhanovsky, um famoso youtuber, foi condenado a 15 dias de prisão pela participação em protestos violentos no final do ano passado. No dia seguinte, anunciou que seria candidato a presidente e, dois dias depois, convocou um protesto motorizado contra as comemorações do dia da vitória sobre os nazistas, data mais importante do país.
Sergei não pôde se candidatar, então foi mais longe: sua mulher, Svetlana, apresentou-se em seu lugar em 20 de maio. A partir daí, os dois organizaram aglomerações na capital, Minsk, para coletar assinaturas que eles precisavam para a nomeação. Militantes a favor da nova candidata foram sumariamente detidos em quase toda amotinação realizada. Mesmo assim, em 30 de junho, apresentaram documentos para o registro da candidatura, que, apesar de uma sonegação na declaração de impostos da candidata, foi aprovada.
Em nome da liberdade, o projeto de governo da líder oposicionista incluía a proibição de organizações pró-russas e a perseguição penal a quem questionasse publicamente a existência de “uma nação bielorrussa separada [da Rússia]”, a responsabilização penal por “insultos públicos à língua bielorrussa” e a vigilância de atividades a favor do governo russo no país. A nível militar, defendia a formação de pessoal militar nas instituições e centros de formação dos países-membros da Otan. O programa pretendia também proibir o comércio com os russos, reduzindo inclusive a participação do país vizinho como fornecedor de energia, além de privatizar empresas estatais com a proibição de aquisição pelo capital daquele país. A candidata também propunha a liberdade de expressão, proibindo a transmissão de programas “jornalísticos, sociopolíticos e noticiosos criados por canais de TV russos.”
Mas não foi dessa vez que a “liberdade” triunfou. Lukashenko venceu sua sexta eleição, obtendo cerca de 80% dos votos em todas elas segundo as apurações oficiais. No entanto, o resultado da última não foi reconhecido pela União Europeia e pelos Estados Unidos, que impuseram mais sansões a Belarus, numa ação humanitária para asfixiar o país e livrá-lo do autoritarismo russófono e forçar a integração do país sob a autoridade do ocidente. Alguns analistas ainda ignoram que os apoiadores do governo pudessem temer que outros grupos dividissem a nação, que já teve territórios anexados no passado. “É isso que me preocupa.
Não é o poder, como algumas pessoas dizem”, declarou o político hexacampeão recentemente. “Não quero que meu país seja cortado em pedaços (...) será muito pior do que o que aconteceu na Ucrânia”.
Assim como na Ucrânia em 2013 e em 2014, os motins da oposição são tão nacionalistas que chegam ao ponto de criticar abertamente o ensino do idioma russo nas escolas ou mesmo atacar pessoas que falam russo. Por outro lado, também defendem uma integração do país no campo econômico e político europeu. Um dos movimentos acampados na capital e que já havia se rebelado anos antes é a Frente Jovem, que compõe o partido Democracia Cristã Bielorrussa (DCB), tem estreitas ligações com os neofascistas ucranianos. Uma descrição mais detalhada dos diferentes grupos que aparecem no conflito foi feita anteriormente por André Ortega para a Revista Ópera.
Alguns comentaristas atribuem os protestos ao aparente descaso do presidente com a pandemia, mas, checando os dados diários, observa-se que houve um pico em maio, com cerca 900 casos por dia, e, desde Julho, os casos registrados estabilizaram em cerca de 160. Uma fala do governante a respeito das medidas sanitárias foi muito propagandeada no mundo alguns meses antes de estourar a crise política. O primeiro link indexado no Google sobre o assunto é um relato de um evento transmitido pela TV Estatal:
"Eu não bebo, mas ultimamente tenho dito em tom de brincadeira que não se deve apenas lavar as mãos com vodka, mas, provavelmente, com 40 a 50 gramas por dia em termos de álcool puro para envenenar esse vírus. Mas não no trabalho!”
Recomendando que os cidadãos lavassem as mãos com frequência, o líder do país fez essa piada numa cerimônia de nomeação de autoridades locais. Após a aprovação dos nomes, desejou saúde aos colegas e emendou outra piada:
“agora, vão para a sauna seca! Os chineses nos disseram que esse vírus não resiste a 60°C”. Por conta dessas e outras declarações, é atribuído a ele um descaso em relação à pandemia.
Em outras palavras, a fala foi distorcida pelos jornais que a repercutiram no ocidente. Isso não significa, no entanto, que os cidadãos bielorrussos que participam dos protestos talvez quisessem ver alguns problemas políticos resolvidos. Se buscarmos alguma explicação econômica, esbarraremos nos índices de desemprego que registravam 5,6% em 2017.
Oficialmente o número de desempregados é menor, por volta de 1%, porque muitas pessoas se recusam a aderir ao programa de seguro desemprego, que impõe alguns serviços públicos e a própria procura por trabalho registrado. Esse patamar pode soar estranho para nós, mas é corriqueiro em economias planificadas como Vietnã, Laos e Cuba, que registram de 0,6 a 2%. No entanto, sociólogo oposicionista Alexander Pine avalia, sem apresentar a conta, que o desemprego real esteja por volta de 10%. O economista Mikhail Zalesski tem certeza que o desemprego atinge ao menos 15% da população, num levantamento que considera como desocupados os trabalhadores em férias ou que trabalham em outros países.
No início dos anos 90, a produção do país realmente havia despencado. Foi apenas em 1996 que o PIB voltou a subir. Nisso, o governo destinou uma boa parte do PIB para medidas de assistência social e subsídios estatais. Isso tornaria desinteressante manter força de trabalho ociosa no país. Mais recentemente, houve uma abertura maior para a economia de mercado, o que impactou o bem-estar social no país. Infelizmente os sites bielorrussos caíram durante essa pesquisa, o que pode confirmar as acusações da Bloomberg de que o governo estaria cortando a internet ou algum tipo de sabotagem do outro lado da briga.
Mas uma explicação desse tipo ignoraria toda a pressão que a Otan coloca em Belarus e que os países europeus impõem a todo campo econômico russo. Recentemente vimos os protestos dos coletes amarelos na França, que reivindicavam o impeachment do presidente Emmanuel Macron, sem que nenhum país pressionasse de fora pela derrubada do governante.
Tudo isso levanta o perigo muito claro de guerra. A discussão em torno do autoritarismo do presidente de Belarus é insuficiente para avaliar a situação política, já que a crise tem se desdobrado em ameaças de invasão militar estrangeira. Por mais motivações individuais que levem manifestantes às ruas, o apoio recíproco dos opositores mais destacados e de governos intervencionistas é uma claro sinal de que o centro da disputa não se mostra restrito aos interesses nacionais.
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